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Tecnologia, Gênero e Política

Blog da Código Não Binário e Núcleo Digital

A nova plataforma de participação do governo é livre, mas não é inclusiva nem contracolonial

Usar software livre pontualmente no governo não basta, precisamos de inclusão, incentivo, novos modelos de contratação, mais instâncias de colaboração e mais pessoas trabalhadoras e gestoras públicas que sejam do setor digital, nativas digitais e contracoloniais (em vários sentidos)

Começando por São Paulo, na semana passada foi aprovada na Câmara Municipal a nova revisão do Plano Diretor (PDE) da cidade (sob muitas críticas). A versão anterior da lei, de 2014, era fruto de ampla participação online e presencial. Na parte online, contou com uma plataforma de participação, software livre, o GestaoUrbanaSP, um sistema gerenciador de conteúdo (WordPress) que nós desenvolvemos em 2013 para permitir que a Secretaria de Desenvolvimento Urbano (hoje SMUL) se comunicasse e conseguisse a participação de pessoas da cidade.

Nessa plataforma, vários módulos de participação, como minutas digitais, mapas colaborativos, infográficos explicativos etc., também abertos e livres, foram instalados e personalizados, levando em conta o legado da comunidade de software livre brasileira (algumas dessas aplicações tem história, várias mãos, foram usadas por exemplo, antes, na revisão da Lei do Direito Autoral e no Marco Civil da Internet). Um espaço colaborativo chamado Café Hacker acolhia interessados no desenvolvimento e design web e de produto, desde o início do desenvolvimento da plataforma. Esse movimento gerou até a entrada da Prefeitura de São Paulo no github e nas redes sociais, à época – era quase junho de 2013 e a população estava usando intensamente Facebook e WhatsApp.

A nova revisão da semana passada usou parcialmente o GestaoUrbanaSP e criou uma nova plataforma específica para o Plano Diretor (outro WordPress, para que?). Em seguida, conectou nela a aplicação Consul, um software livre espanhol, para a parte de debate, aparentemente sob orientação do grupo de governo aberto da cidade – que também surgiu do movimento de participação digital que iniciamos em 2014 -, na linha do Participe Mais.

Há uma diferença fundamental entre a gestão do primeiro Plano Diretor e a de agora: a primeira foi de Fernando Haddad (PT) e a atual é continuidade do Bolsodória, de Bruno Covas-Ricardo Nunes (PSDB). Toda uma rede de pessoas diferentes, de ideologia, valores, interesses, gostos (incluindo de software), é incluída ou excluída das posições de poder públicas nesse movimento de nova direção.

Assim, é honrável que o GestaoUrbanaSP esteja no ar ainda. Uma das poucas plataformas que restaram do movimento amplo de digitalização com liberdade e abertura que iniciamos em 2013 – o Café Hacker e o Monitor de Metas – PlanejaSampa, por exemplo, não resistiram ao “choque de gestão” ainda com o Dória.

A plataforma foi até usada esses dias direitista Ricardo Nunes para rebater as críticas recentes ao PDE:

“Desde 2014, a população pode acompanhar pela internet a aplicação do Plano Diretor pela plataforma de monitoramento do PDE no site Gestão Urbana. Ela foi desenvolvida pela Prefeitura para dar transparência e informar sobre o andamento do Plano Diretor, disponibilizando dados para diversos indicadores.”

— Ricardo Nunes (PSDB)

Faltou dizer que foi no governo PT que ela foi criada, né Prefeito? Mas parece que dados abertos e participação digital finalmente são “cool”, ou melhor, “top”. Entraram no vocabulário de pessoas e organizações de centro e a direita. Talvez no bojo dos serviços digitais ligados aos impérios globais e startups, que são bem aceitos de social-democratas até os neoliberais (já que veem ali formas de enriquecimento).

Na foto: Ativista Marcelo Branco, Tux (símbolo do Linux e do Software Livre), Dilma e Lula no FISL 10 em 2009 – Por Ricardo Stuckert.

A gov.br Lula 3, o Decidim e a estranheza

Me surpreende, porém, que a gestão federal esteja em um rumo parecido do que a direita hoje, ainda mais sabendo que algumas pessoas nas posições de serviços digitais e participação do Lula 3 acompanharam e foram parceiras do nosso trabalho de digitalização com liberdade e abertura (parceiras até certo ponto, já que nós, da militância de software livre, não nos contentamos com a mera posição de prestação de serviço, e isso incomoda as pessoas mais conservadoras da gestão pública).

Foi lançada há alguns meses a plataforma de participação digital no PPA – Brasil Participativo. Para ela, foi escolhido o software livre catalão (sim, mais um europeu) Decidim.

Por acaso eu participei da concepção e primeiros trabalhos desse software em Madri, no evento Democracy Lab, em uma hackatona onde essa aplicação ainda era um movimento chamado Demo Comunes. Curiosamente eu estava no Democracy Lab justamente para apresentar as soluções de democracia digital que acabávamos de realizar em São Paulo e no Brasil, como o GestãoUrbanaSP, Monitor de Metas e outras soluções para o partido Rede Sustentabilidade. Mas, apesar do espaço de fala, a experiência que trazíamos do sul global não foi tão valorizada. Me lembro de ter muita pouca abertura para opinar na hackatona e no Demo Comunes. Começou ali então um trabalho do zero, em linguagem Ruby on Rails. As funcionalidades, porém, são semelhantes as que outros softwares livres já tinham (como os nossos brasileiros). Por que as experiências brasileiras não foram consideradas? Tenho quase certeza que depois do evento, apenas pessoas da Catalunha e Espanha continuaram nos grupos de trabalho, pois os grupos no Telegram do Demo Comunes, que eram mais globais, foram aos poucos se silenciando – e não houve qualquer convite a participar do que viria a se tornar o Decidim ali naqueles espaços.

Pactuações da campanha Lula 3, software livre, inclusão social e investimento no setor digital brasileiro

Bom, voltando ao lançamento da Brasil Participativo, o governo diz que a plataforma é um sucesso, comparando a participações anteriores – tempos em que nem sabíamos o que era Fake News ou quem era Alexandre de Moraes -, será? Notícias recentes falam de 300 mil participantes. De um universo de 170 milhões de pessoas brasileiras que tem acesso as redes sociais por exemplo? Devemos nos contentar com algo como 0,18%?

Com o começo da plataforma, ativistos da cultura digital (no masculino forçado mesmo) saíram inscrevendo e promovendo algumas ideias na plataforma (a gamificação em ação!), sem construção em comunidade. Em uma votação, às pressas, uma “proposta” (um tweet, uma ideia) sobre serviços digitais e software livre (de um conceito que venho conversando com o autor desde aproximadamente 2015 com outros nomes e que tem até um site-manual traduzido da experiência estadounidense) foi escolhida para representar um grupo de software livre resistente e pulsante no Telegram – grupo esse que, junto a pessoas militantes do PT, fez uma pactuação importante de 13 demandas pactuadas entre a campanha de Lula 3 e movimentos de tecnologia.

Ninguém parece ter reparado porém que a iniciativa da plataforma digital (feito pela Secretaria Geral da Presidência da República SGPR e Ministério do Planejamento e Orçamento MPO, com a parceria do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, do Dataprev, da comunidade Decidim-Brasil e da Universidade de Brasília UnB) não seguiu algumas das 13 demandas pactuadas entre a campanha de Lula e movimentos de tecnologia, por exemplo:

6 – Fomentar o desenvolvimento da indústria e dos serviços digitais, bem como o empreendedorismo em áreas estratégicas e sociais, para a geração de empregos de qualidade e aumento da produtividade e competitividade das empresas nacionais, desenvolvendo empresas locais de hardware, software e serviços voltados a demandas estratégicas e nichos de mercado, indo de semicondutores a lojas de aplicativos, em parceria com universidades e parques tecnológicos.

8 – Usar o poder de compra do Estado para alavancar a indústria nacional de hardware e software, como forma de gerar trabalho e renda e oportunidades para as empresas nacionais.

10 – Estabelecer programa de estímulo à inovação com base em plataformas livres e tecnologias abertas pelos entes da federação, empreendedores individuais, micro, pequenas e médias empresas.

Ao utilizar o software livre europeu e seguir o hype dos movimentos progressistas da Europa, essas pessoas gestoras (especializadas em gestão pública, jornalismo, economia, relações internacionais etc mas não em produto, design, programação, etc) parecem ter ido no automático, experimentado o complexo de vira-lata, fazendo escolhas técnicas e políticas questionáveis.

Uma crítica construtiva

Podemos criticar essa escolha, por exemplo, da seguinte forma.

Primeiro, não seguiu o pactuado nos itens 6, 8 e 10 acima resultando por exemplo em problemas de inclusão, incentivo, distribuição de renda etc.

Segundo, não consultou os movimentos de tecnologia sobre qual software seria escolhido, nem mesmo como ele seria personalizado e como se daria seu desenvolvimento e manutenção. Houve um encontro com algumas pessoas próximas das pessoas gestoras, mas isso está longe de ser uma consulta aos movimentos de tecnologia. E bastava algumas interações digitais por exemplo no aplicativo Telegram (usado pelas pessoas gestoras) para que isso acontecesse de maneira bem mais ampla (como fizemos por exemplo com o GestãoUrbanaSP em São Paulo, convidando desde a etapa de planejamento pessoas cidadãs interessadas para participar).

Terceiro, não se considerou que para falar com o Brasil é preciso conectar intrinsecamente uma nova solução digital de participação, em 2023, à dispositivos móveis e aplicativos de mensagem e foto/vídeo. Isso é também é sobre acessibilidade é inclusão. Não basta “plataforma web”, que era a solução do começo da década passada – já em 2013, com as jornadas de junho, víamos esse movimento acontecer, considerando que elas foram viabilizadas por mega eventos de Facebook, aplicativos de dispositivos móveis do Facebook e WhatsApp e livestreaming em aplicativos móveis YouTube e Instagram, e também fortíssimo o uso do aplicativo WhatsApp na campanha do Aécio contra Dilma (2014). Temos nosso caso com o Boulos (2020) na campanha para a Prefeitura de São Paulo para ilustrar também o poder do uso de humor e WhatsApp.

Quarto, aplicações como Consul e Decidim, apesar de livres (“top”!), são em Ruby on Rails, uma linguagem de programação da elite da programação, digamos assim. Essa linguagem no Brasil é mais usada em projetos com orçamentos grandes ou gigantes, como por exemplo no setor financeiro, nas grandes empresas de tecnologia, na publicidade, ou em laboratórios de universidades públicas (no Brasil ainda preenchidos por classes e identidades dominantes). Não por acaso o Decidim no gov.br foi desenvolvido na UnB, que agora tem um termo para continuar o desenvolvimento. Pessoas programadoras formadas nessa linguagem tem salários altos (compatíveis com os grandes orçamentos dos projetos) e são em geral pessoas trabalhadoras brancas, masculinas, com ideologia neoliberal e de classe alta. Assim, as oportunidades de manutenção e desenvolvimento ficarão restritas a esse público ou aos europeus que gerenciam o software. É contra a massa das pessoas trabalhadoras digitais brasileiras e também contra o legado da comunidade de software livre brasileiro, que tem muito PHP/Wordpress e Python, porque não consideram essas linguagens mais usadas e o uso e aprimoramento dos softwares já existentes (talvez os rotulem de “ultrapassados” ou “pouco desenvolvidos” – notou a semelhança com o “em desenvolvimento” dos países do sul global?). Talvez nem os conheçam, pois não vivem essas pessoas gestoras não vivem nessas comunidades no dia a dia.

Quinto, se é para ser algo moderno, por que não pensamos em algo na linha web 3, stateless, que sobreviva por exemplo a casos como foi o bolsonarismo quebrando computadores? Vitalik, o criador do Ethereum, disse uma vez no podcast Blockchain Socialist uma coisa interessante que podemos resumir mais ou menos assim: há 20 anos atrás tínhamos código aberto como solução para construir coisas para computador que não fossem controladas por uma corporação, mais recentemente isso pareceu uma conversa errada porque o que importa é onde os dados estão, e com a web 3 (e o protocolo Ethereum por exemplo) vem a visão de que temos que nos livrar desses servidores e construir soluções stateless (descentralizadas, por exemplo hospedadas em blockchain e consequentemente em todos os computadores das pessoas usuárias, como podemos fazer em protocolos como o Ethereum, ou em soluções como o protocolo Solid que tem na equipe Tim Berners-Lee). Podemos pensar portanto que em uma fase da web, a disputa de poder estava na propriedade do código (gerando por exemplo movimentos como o de código aberto e software livre), depois, mais recentemente, na propriedade dos dados (gerando colonialismo de dados, Cambridge Analytica, LGPD, etc), hoje, com a Web 3 por exemplo, é tudo isso e também infraestrutura/protocolos digitais.

Essa plataforma digital Decidim faz com que a decisão seja bem intencionada por criar participação, mas no sentido oposto do incentivo à inclusão social e à indústria nacional – bandeiras fortes, se não as principais, de Lula, em toda sua trajetória. Precisamos rever isso. Provavelmente no governo federal vai prevalecer a máxima do “agora não dá pra ver isso”, ou “já foi”. Mas espera. Quem sabe a ENAP não pode começar esse movimento em paralelo corrigindo a rota? Ela ou a UnB poderiam hospedar uma espécie de hub de governo como vimos surgir em São Paulo entre ImpactHub e Governo do Estado? Ou na pior das hipóteses algo improvisado mesmo, de início, em algum espaço de alguma secretaria de ministério – como fizemos na secretaria de urbanismo da Prefeitura de São Paulo.

É urgente um processo de abertura da gestão do produto, desenvolvimento e design, para outras pessoas trabalhadoras, porque outras demandas de outros ministérios vão se encadear a essa (secretarias irão se inspirar nessa experiência como acontece em começos de mandatos) e precisamos resgatar as pessoas trabalhadoras da cultura digital, do software livre e do código aberto, de serviços digitais de governo (aqueles originais, que não são puxadinhos de empresas americanas eu europeias, ou seja, softwares públicos e livres brasileiros), desses setores que estão bravamente resistindo aos golpes que os exilaram totalmente também.

Escolher só usar software livre não basta. Escolher só proteger os dados não basta. Precisamos pensar a cadeia como um todo, algo que pessoas trabalhadoras e gestoras públicas do setor digital e contracoloniais, especialmente socialistas (pelo menos “socialistas” como o Lula) e nativas digitais, poderão fazer melhor. Assim criaremos cadeias de produção amplas e tomaremos decisões mais acertadas. Tecnológica e politicamente. Alcançando realmente soberania nacional em tempos de sociedade da informação.

O governo federal deve comprar software de desenvolvedores nacionais e aprimorar o legado de software livre e público existente. Não virar as costas para tudo o que já foi feito e escolher um software da moda. É necessário mais atenção com essa cadeia e a compreensão que o setor de tecnologia digital é fundamental nos eventos políticos chave pelo menos desde a última década (mega eventos de Facebook na Primavera Árabe, Occupy Wallstreet e jornadas de junho 2013, WhatsApp nas eleições 2014, lava-jato e no golpe corporativo-parlamentar-midiático, PL Espião, Temer e Microsoft contra Software Livre, Brexit-Trump Cambridge Analytica, regulação global Big Tech, criação da GPDR/LGPD, Bolsonarismo, Gabinete do Ódio, Fake News, disparos ilegais e manipulação das eleições 2018, Big Tech vs PL das Fake News, etc) para a saída do cenário catastrófico que ainda estamos, com tecnologias estrangeiras capitalistas dominando nosso debate público, nossos sistemas governamentais, nosso hábitos e comportamentos e sabe-se lá mais o que com a recente popularização da Inteligência Artificial generativa de Microsoft e Google.

No final dessa semana ainda tivemos notícias estarrecedoras como o ChatTCU (que se acha seguro porque seus dados estão com a Microsoft – esqueceram dos e-mails vazados do Outlook da Dilma?) e a contratação do Temer pelo Google para a manip… err, articulação das disputas em políticas digitais em curso.

No fim, é também sobre recortes de raça, de gênero e geracional que predominam nas posições de decisão da gestão pública, do setor de tecnologia, passando pelas empresas públicas, movimentos sociais, sindicais, redes virtuais, ainda sob tutela majoritária de homens brancos e de meia-idade. Um sistema de patriarcado de alta intensidade e de binarismo de gênero, trazido pela colonização. Mas isso a gente deixa para um próximo post, onde vamos falar da apresentação que fizemos na RightsCon 2023.

Atualização 10/07/2013:

– Com esse artigo surgiu reunião com o Hadrien do Decidim Internacional, em breve vou colocar aqui a ata (só estou esperando ele revisar se não faltou nada). Ele está desenvolvimento diretrizes para a chegada do Decidim em países e se comprometeu com melhorias no processo. Como levantei com pessoas envolvidas com a instalação no govbr do Decidim, também, como o Gama, sua instalação foi feita em um encontro eventual.

– Em debates no grupo DecidimBR do Telegram foi lembrada a experiência Noosfero no governo Dilma que desenvolveu canais digitais em Ruby on Rails, como o Participa BR. No grupo NoosferoDev no Telegram me foi explicado que o repositório dessa tecnologia não é atualizado há mais de 2 anos. Tem coincidência com o fim da Colivre. Isso reforça a necessidade da escolha por software nacional e os problemas que a falta de incentivo aos fornecedores brasileiros geram.

– Há instabilidade e problema nos dados abertos na plataforma Brasil Participativo/Decidim. Pela comunidade DecidimBR consegui uma planilha que demonstra corretamente as propostas vigentes e sua quantidade de votos.


Veronyka Gimenes
Navega entre programação, gestão no setor público e terceiro setor, design e ativismo. Especializada em Desenvolvimento de Software, Globalização, Cultura e Diversidade. Com mais de 15 anos de experiência nessas áreas, já trabalhou com IBM, Prefeitura de São Paulo, Banco Mundial para Governo do Ceará e Rio Grande do Sul, Bloomberg Philanthropies, Ministério da Cultura do Brasil, Campanha Presidencial Lula 2022 e Haddad 2018 e 2022, Partido Rede, OAB SP entre outros. Atuou em projetos no setor Legislativo, Executivo e Judiciário e já coordenou campanhas políticas de pessoas vereadoras. Criou a setorial nacional de tecnologia do PSOL. Já palestrou no TEDxUFRJ, Democracy Lab (MediaLab-Prado, Madrid), MIS – Museu da Imagem e do Som, Red Bull Station, Prefeitura de São Paulo, IAB-SP, InovaDay/iGovSP e RightsCon.

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